Pois é, depois tem gente que se pergunta porque é que eu não gosto de Copa do Mundo. Como bem chamou a atenção o jornalista Janer Cristaldo em seu blog, é bem nessa época que nossos caros políticos aproveitam para aprovar coisas como o projeto de lei 708/03, que aprovam novas normas para o exercício do jornalismo:
(…) o projeto, de iniciativa do deputado Pastor Amarildo, pretende mandar o país de volta mais longe ainda no tempo, para os dias da Idade Média, quando as guildas controlavam erreamente o exercício das profissões. No fundo, a intenção é sufocar a liberdade de expressão, regulamentando uma profissão que não pode ser regulamentada, o jornalismo. Se antes apenas exigia-se curso para o exercício do jornalismo, em função de um decreto-lei promulgado por uma junta militar em 1969, o novo projeto, aprovado pelo Congresso na calada da Copa, pretende enquadrar até mesmo colunistas e comentaristas. Ora, este dispositivo ditatorial não encontra paralelo em nenhum regime democrático do mundo. Jornalista é quem tira seus proventos do ofício de jornalismo e fim de papo.
O projeto do pastor é uma reação à rejeição da proposta de um Conselho Federal de Jornalismo, feita pela Fenaj (Federação Nacional de Jornalistas) e encaminhada em 2004 ao Legislativo pelo Governo Federal. Devido à pressão de jornalistas e proprietários de veículos de comunicação, a tentativa de cercear ainda mais a liberdade de expressão foi retirada no mesmo ano. De novo, as cotas. A guilda branca quer proteger a corporação. Enquanto o país se empolgava com a Copa, o projeto passou quase clandestinamente no Congresso. Depende agora de veto ou aprovação do Supremo Apedeuta. O espantoso é que tal dispositivo surge precisamente nestes dias de Internet, em que qualquer cidadão pode montar seu blog e fazer jornalismo a seu gosto.
Sim, ele está falando sério: comentarista é citado como sendo função do jornalista. O bonito é que a definição é uma contradição por si só, já que define comentarista como
Ou seja: para se comentar algo num jornal precisa ser tanto jornalista como especialista na área. Ok, e quais são os critérios para definir especialidade? Pós-graduação? Trabalhar na área? E que perfil terá que ter o profissional de comentarista político? Será que além do diploma de jornalista terá que ter formação de cientísta político?
Bem, a Federação Nacional de Jornalistas divulgou sobre o assunto o seguinte:
Comentários jornalísticos já estavam previstos como atividades de jornalista profissional na legislação em vigor (artigo 2º, inciso II do decreto 83.284/79). O novo projeto mantém a atividade entre as 23 funções específicas. Mas tanto o decreto em vigor desde 1979 quanto o novo projeto-de-lei prevêem a figura do colaborador, especialista. Não há mudança, só marola das empresas. Qualquer um pode escrever em jornal. Desde que o dono permita. Mas o jornalismo só deve ser exercido por jornalistas. Qualquer um pode falar sobre Justiça, mas o exercício da profissão do Direito é exclusivo dos advogados e nunca a mídia se levantou para argumentar que a regulamentação da advocacia ameaça as liberdades individuais, tão preciosas como a liberdade de expressão.
Bem, não quero dizer nada, mas essa colocação aí não responde a questão maior, que é se não jornalistas poderão continuar comentando em jornais, afinal está no projeto de lei:
Art. 2º A profissão de jornalista compreende, privativamente, o exercício, por meio de processos gráficos, radiofônicos, fotográficos, cinematográficos, eletrônicos, informatizados ou quaisquer outros, por quaisquer veículos, da comunicação de caráter jornalístico nas seguintes atividades, entre outras:
(…)
– III – comentário, narração, análise ou crônica, pelo rádio, pela televisão ou por outros veículos da mídia impressa ou informatizada;
E aí? Como é que fica?
Update: como a GarotaDPI chamou a atenção nos comentários, o Lula vetou o projeto. Aliás, é muito interessante o seguinte trecho na justificativa do veto enviado para o Senado:
Verifica-se que o texto aprovado, embora permita uma interpretação conforme a Constituição, está redigido de tal forma que pode, eventualmente, constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social. Com efeito, ao reservar o exercício de comunicação de caráter jornalístico em meios eletrônicos ou informatizados, pode-se dizer que um blog de caráter jornalístico, ainda de um grêmio estudantil ou de uma associação de bairro, poderia ser impedido de funcionar sem um jornalista responsável, devidamente registrado. Assim, o texto da lei deveria ressalvar determinados meios de comunicação como passíveis de funcionamento sem a necessidade de um jornalista responsável.
Pois é, interessante ver como blogs cresceram a tal ponto que servem de justificativa para um veto presidencial… 🙂