Recebi esse artigo por email e creio que ele merece o copy&paste integral:
Anslinger e o Narcotráfico
(*) Janer Cristaldo
14/04/2003
Vim para São Paulo há doze anos. De início, morei em Santa Cecília. Como de hábito, ao chegar em uma cidade, vou estabelecendo meus laços com o que chamo de minha base operacional: a moça da quitanda, o barbeiro, os taxistas, os donos de bar e os garçons do bairro. Desde logo fiquei sabendo que, numa esquina próxima, uma quadrilha de nigerianos traficava desde maconha a cocaína. A quadrilha só foi descoberta pela polícia paulistana … no ano passado. Os nigerianos chegaram a montar uma boate, de nome Máfia Siciliana, já sugerindo algo ao cliente potencial. A espelunca era gerida por uma siciliana, casada com um dos traficantes.
Eu, que não cheiro nem fumo, sabia há mais de década que naquela esquina corria frouxo o tráfico de drogas. Diga-se de passagem, ninguém no bairro ignorava o fato. Ninguém exceto a polícia, que só foi saber da coisa uma década depois. Com estardalhaço de imprensa, prenderam a siciliana e os nigerianos. Presos os traficantes, segundo minha base operacional, o tráfico continua normal no pedaço. O bairro tem várias escolas a abastecer, uma justo em frente à Máfia Siciliana, que continua aberta como se nada tivesse acontecido. Afinal, ninguém pretende que os colegiais passem por crises de abstinência. E ainda há quem julgue que, com a ação da polícia, se pode acabar com as drogas.
Começa-se a falar no Brasil, pela primeira vez no alto escalão da República, em descriminalização das drogas. Só depois de terem sido assassinados dois juízes, autoridades chegam à brilhante conclusão: sendo a droga comprável em farmácias, esvazia-se do dia para a noite este poder formidável do tráfico, que já criou bantustões independentes no Estado do Rio. O império da droga no Brasil é muito mais vasto que o das FARC na Colômbia, e ainda há quem se pergunte se não estaríamos entrando em uma fase de \”colombianização\”. Ora, na Colômbia as FARC têm um território definido, separado do que resta do Estado de Direito. Aqui, o tráfico está entranhado no Estado, tem agentes na polícia, deputados no congresso e ministros no Judiciário. A guerrilha marxista da Colômbia jamais sonharia tanto.
A descriminalização – que a imprensa prefere chamar de descriminação, como se o verbo criminalizar não existisse em português – além de ser a solução óbvia ao problema, é a única. Sem a ilicitude da droga, os lucros fabulosos do tráfico viram pó, sem trocadilho. Alguns países europeus, mais pragmáticos, há muito adotaram esta política. No início dos 70, quando eu vivia em Estocolmo, o Estado oferecia locais especiais para quem quisesse curtir seu baseado. Havia bares para maiores de idade e para menores. Jornalista, visitei esses bares, onde uma juventude endinheirada e enfastiada se comprazia em olhar, ora para o vazio, ora para o próprio umbigo. Visitei os bares para maiores de idade, bem entendido. Nos destinados a menores, fui barrado na porta pela polícia. Neles, só menores podiam drogar-se. Hoje, trinta anos depois, não temos notícia alguma de que o tráfico controle cidades na Suécia. Ao controlar o consumo, o Estado controlava o tráfico. Esta mesma política há muito vem sendo adotada na Holanda, Bélgica, Suíça, Espanha e, mais recentemente, em Portugal.
Com a facilidade de acesso às drogas teremos mais drogados, objetam almas mais cautas. Mais acesso do que se tem hoje? Se você quiser droga é só descer até a rua e logo a encontra. Só a polícia não consegue encontrá-la, e para isso terá gordas razões. Em mercados mais sofisticados como Rio e São Paulo, são comuns os disque-drogas, pelos quais você pode encomendá-las por telefone e esperar pela entrega no aconchego de seu lar. Para isto existe a telefonia: para seu conforto. Como o tráfico não é insensível às novas tecnologias, hoje você já pode encomendar suas doses de paraíso artificial até mesmo pela Internet.
Há também quem objete: com a droga em farmácias teremos mais mortes. Ora, sem drogas em farmácia os drogados estão morrendo da mesma forma. Que mais não seja, as farmácias têm as prateleiras lotadas de produtos que matam. Bares e restaurantes também. Tabagismo mata, e o presidente da República pisa em cima do Congresso e autoriza a publicidade do cigarro. Álcool em excesso mata, como também o açúcar mata, e não vamos cogitar de proibir o álcool ou o açúcar. Trânsito mata aos milhares e a publicidade do automóvel prova por A mais B que, se você não tem um automóvel, você não vale um vintém como ser humano. Se a liberação da droga produzir algumas mortes a mais, paciência! Cada cidadão tem direito a escolher sua morte preferida. A bem da verdade, até picanha gorda mata, e nem por isso vamos proibir o churrasco. Para quem quer morrer depressa, o mercado é pródigo em opções.
Por que a maconha é hoje um mercado milionário? Tudo isso porque um certo Mr. Harry Anslinger, diretor do Federal Bureau of Narcotics – daquele mesmo país que nos exporta câncer como atributo do \”homem que sabe o que quer\” – tendo fracassado em sua luta contra o álcool nos anos 30, decidiu demonizar o cânhamo. Entre 1930 e 1934, o Bureau compilou uma série de desinformações sugerindo que o uso da marijuana estava diretamente ligado ao crime, a comportamentos violentos e provocava loucura. Em 35, o país foi inundado com propaganda contra o uso da erva. Em 1937, o Marihuana Tax Act restringia o uso da maconha, o que implicava restrições ao cultivo do cânhamo. Com isso, livrava a indústria do papel da ameaça de um papel produzido a partir da Canabis sativa.
Bons macacos, engolimos a legislação gringa. Sob o olhar complacente do governo, brindamos nosso organismo com cânceres e enfisemas. Graças à proibição da maconha, permitimos aos \”excluídos\” das favelas a construção de um Estado paralelo, hoje com mais poderes que a guerrilha colombiana. Conhecesse um pouco da história recente, a bandidagem brasileira deveria erguer um monumento a Harry Anslinger, este benemérito incentivador do narcotráfico.
(*) Cristaldo é jornalista, escritor e tradutor e vive em São Paulo.
Apesar de achar o penúltimo parágrafo meio confuso, faltando algumas cisas, concordo com tudo que ele escreveu aí, principalmente que o maior interessado na proibição das drogas é o próprio traficante.