Duas visões do funk

Baixaria comercial

Por Rui Variani

Acabo de voltar do carnaval na praia, onde fiz uma triste constatação: tá dominado, tá tudo dominado!!! Só dá funk! O “neo forró” tenta uma reação, mas suas letras não são cafajestes e não trazem a “alegria compulsória” que o brasileiro tanto gosta. Aí não dá, né, pô?! Como é que o cara quer fazer sucesso sem tratar mulher como lixo?! Esses forrozeiros, vou te contar… A indústria do CD pirata vai tratar de enfraquecer esse negócio, mas o jabá e a televisão Devem insistir na onda por um bom tempo. Xuxa, Luciano Huck, Raul Gil, Gugu, enfim, toda essa gente boa vai se virar pra ganhar em cima.

A Bandeirantes até já vai lançar um programa semanal com duas horas de duração dedicado ao funk. Isso, claro, até o “Tigrão”, a mente por trás do “movimento”, ser domesticado, o que, em termos mercadológicos, significa botar um terninho e gravar uma babinha pra novela das oito da Globo.

O “Tigrão”, aliás, deu uma elucidativa entrevista pra revista VIP de março. Eu digo elucidativa, pois ele dissipa a névoa de ignorância (por parte do público) que encobria alguns aspectos do “movimento”. Vejamos: em determinado trecho da entrevista, “Tigrão” diz: “…As pessoas gostam desse erotismo. Mas, se você analisar, as letras nem são tão pesadas. Elas têm duplo sentido, até porque o público infantil ouve funk”. Muitas coisas interessantes nessas sentenças! Então vamos por partes: “…se você analisar, as letras nem são tão pesadas”. Eu analisei e ele está certo. Quem, em sã consciência, poderia achar pesada a letra do funk “Máquina de Sexo”, que diz: “Máquina de sexo, eu transo igual a um animal / A Chatuba de Mesquita do bonde do sexo anal / Chatuba come cu e depois come xereca / Ranca cabaço, é o bonde dos careca”? Note-se a leveza de termos como “sexo anal”, “cu”, “xereca” (!) e “cabaço”. “Elas têm duplo sentido…”. Procurei demais e não achei o duplo sentido no funk “Barraco III”: “Me chama de cachorra, que eu faço au-au / Me chama de gatinha, que eu faço miau / Goza na cara, goza na boca / goza onde quiser”. Ah, agora entendi! “Goza na cara” é porque o cara ficava tirando sarro da menina pelas Costas. Aí ela diz “Goza na cara!”. Que coisa… “…até porque o público infantil ouve funk”. Eis uma verdade e a preocupação do “Tigrão” se justifica. Foi pensando nas crianças que o garoto Jonathan, de 7 anos (ele mal tem coordenação motora para reproduzir a coreografia) foi incentivado a gravar o funk “Jonathan II”, de edificante letra: “De segunda a sexta, esporro na escola / Sábado e domingo, eu solto pipa e jogo bola / Mas eu já estou crescendo com muita emoção / E eu já vou pegar um filé com popozão”. 7 anos!!! 7 anos!!! Pô, foi mal… A culpa é minha, gente grande, feia e besta, que não entendo.

Então, vamos lá, repetir o discurso de dez em cada dez apresentadores de programas femininos e de auditório: todo mundo junto, um, dois, três e já: “A malícia está na cabeça do adulto, a criança só quer se divertir. Onde já se viu, se preocupar com uma coisa dessas. Das crianças que passam fome na rua ninguém fala nada…”. Aplausos entusiasmados e urros de apoio, por parte do auditório. É bom que se diga que as crianças que passam fome nas ruas são um sério problema social, cuja resolução deve ser uma das prioridades máximas de qualquer governo (detalhe sem importância: os funks da moda não passam nem perto dessa questão. Mas, beleza, vamos lá…). Só que é um problema do governo, a gente não tem nada com isso, não é mesmo? Ao invés disso, vamos dar risada e incentivar o moleque de 7 anos (7 anos!!!) a “pegar um filé com popozão”. Afinal, nunca é cedo demais pra mostrar pro papai que se é um garanhão, que não deixa passar nenhuma cachorra. Isso é que é uma infância saudável! E pensar que eu perdi tanto tempo assistindo “Bambalalão”, “Sítio do Pica-Pau Amarelo” e ouvindo aqueles discos da “Turma do Balão Mágico”. Ao invés disso podia estar por aí, transando umas cachorras… Enquanto a gente dá risada, a molecada vai crescendo com a certeza de que mulher não passa de uma bunda e um par de peitos siliconados, que gosta de ser chamada de cachorra e que acha que só um tapinha não dói. Se “só um tapinha não dói”, o primeiro deveria ser dado no popozão dos tigrinhos e cachorrinhas que curtem essas coisas. Depois a gente não entende o motivo do aumento dos índices de violência contra a mulher e porque ela é tão desrespeitada na Sociedade. Será que não é óbvio? Você, cadela… quero dizer, mulher que está lendo isso, levante-se e lute! Não seja uma cachorra! Um tapinha dói, sim! Exija respeito antes que nós, homens, acreditemos que é isso mesmo que vocês querem. Deponham as Xuxas, Carlas Perez, Feiticeiras, Tiazinhas, Enfermeiras, Internéticas, Vampiras, Fernandas Abreu e Vanessinhas Pikachu de seus reinados de miséria intelectual! Conto com vocês!!! E lembrem-se sempre da cada vez mais pertinente frase de Oscar Wilde: “Todo crime é vulgar, assim como toda vulgaridade é criminosa.” Ainda, no livro Cabeça de Negro de Paulo Francis havia um comentário acerca do que seria quando o morro descesse para a avenida… Parece que o tempo é agora! A barbárie impera!


Em resposta a “Baixaria Comercial”

Por Marlon Xavier

Realmente, a exploração comercial e, em termos musicais, a qualidade das músicas do funk “batidão” carioca deixa muito a desejar e a discutir. Mas alguns aspectos merecem ser salientados, em contraponto à tua crítica. Primeiro, o funk representa aqui que o rap é (ou era) nos USA: uma organização fora das grandes gravadoras (o que aqui realmente está mudando, infelizmente…), com bandas e bondes etc gravando, sendo conhecidas nos bailes e em suas comunidades. Uma coisa meio caótica, já que vários artistas gravam a mesma coisa, utilizam samples de tudo que é coisa (sem royalties, please) – um pouco no mesmo espírito louco do samba antigo. Quem falou sobre isso foram os caras da Comunidade NinJitsu, num programa da Ipanema FM Porto Alegre. Uma das conclusões também que dá pra tirar é que todo esse espalhafato, além de promover mercadologicamente a música, só acontece porque o funk foi tirado do gueto – quando as festas para milhares de pessoas eram restritas aos habitantes do gueto, da vila, e não se abria para patricinhas da Barra, ninguém ouvia falar de discussões das letras e supostos chauvinismo, misoginia ou dominação que elas pudessem conter. Discutia-se, isso sim, a violência que anteriormente dominava esses bailes, entre Lado A e Lado B (nome do disco do Rappa, lembram), mas essa discussão era geralmente vinculada a uma postura de fundo tipo “esses pobres, primitivos, bárbaros, tem mais é que se matarem mesmo”… Os motivos sociológicos de tais acontecimentos vão muito mais fundo do que geralmente é falado. O mesmo acontece com adolescentes alemães e americanos de classe média alta… As letras são pesadas. E daí? Sade é “pesado” e foi um maiores escritores da humanidade. NWA e Snoop Dogg tem versos como “I shot the bitch / one less bitch I gotta worry about” e “you can juggle with these motherfuckin nuts in your mouth” e atingem o primeiro lugar da Billboard. Ou seja: tais manifestações “artísticas” acontecem por algum motivo, e, o que é mais importante, são consumidas e adoradas por algum motivo também. A depravação dos costumes? Ela também acontece por alguma razão, e não é por uma maldade inata do ser humano como queria Freud. Realmente, a malícia está na cabeça da criança também, não só na do adulto, e cada vez mais. Mas porque sexualiza-se a criança cada vez mais cedo??? Nunca ví alguém dar uma razão pra isso. Fatores de mercado? Ora, há pouco os fatores de mercado estabeleceram (pelo menos segundo a porcaria da Veja) que a virgindade – sim, a virgindade, que no tempo de nossos avós tinha aquela aura… – era o novo valor a ser cultuado, com adolescentes atrolhando clínicas de reconstituição de hímen. Em suma, como em toda essa estória, a discussão é muito mais complicada do que aparece na mídia ( e no teu texto).

Quantos aos autores que citas, o próprio Oscar Wilde foi perseguido e preso exatamente pelos mesmos motivos que o funk o é nos dias de hoje: depravação sexual e atentado aos bons costumes (era homossexual e se enrolou de vez ao ter casos com menores de idade e gente da nobreza). Mal comparando, pois Wilde obviamente representava uma ameaça muito maior para a aristocracia inglesa por conta de sua poética virulenta (em outras palavras, não estou comparando o talento de um Wilde – ou Sade – com um Tigrão…). Por outro lado, Paulo Francis foi um jornalistas mais reaças que já li, racista assumido – e vira-casaca, já que de pseudo-socialista passou a New Yorker burguês até a medula, idolatrando Donna Karan como se fosse Gore Vidal. Preferiria, nessa discussao de tapinha não dói, citar Nelson Rodrigues, muito mais conhecedor da alma do brasileiro do que Francis… As próprias mulheres gostam dessa estória de tapinha, de outra forma não a cantariam; o funk idolatra, de certa forma, o culto ao corpo – de homens e mulheres, típico do Rio – mas não representa necessariamente uma dominação masculina de cima pra baixo. Essa é uma questão velha, que feministas empedernidas adoram citar para podar manifestações mais kinky – mais uma vez, de ambos, homens e mulheres. A dominação existe dos dois lados – leia coisas como os depoimentos dos homens americanos em Relatório Hyte, ou mesmo Kinsey, e verá que mesmo nos anos 60 a coisa não era bem assim. Enfim, o que tento criticar é a tendência de, a cada vez que uma manifestação cultural dessas aparece, tentar reprimi-la ou rotulá-la de pobre ou vulgar ou coisa do genero – perdendo assim uma oportunidade de discutir por que o contexto de nossa sociedade, nossos valores (valores que compartilhas fervorosamente) etc produzem tais manifestações. Ou seja: a culpa é nossa também.

One thought on “Duas visões do funk

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